A revisão dos fatos estimulada pela interpretação de outros agentes de história faz com que termos sejam constantemente atualizados. Uma dessas trouxe o debate entre usar “escravo” ou “escravizado” para falar sobre os indivíduos que viveram no período de exploração que ocorreu no Brasil até 1888.
Entenda as diferenças dos dois termos do ponto de vista histórico-sociológico.
Escravo ou escravizado
A alteração de “escravo” por “escravizado” se dá pela interpretação do que de fato ocorreu. Afinal, a pessoa nasce livre até que alguém a escravize, nesse caso, o escravizador. Logo, ser escravo não é algo natural.
A noção de “ser escravo”, além de conferir certa naturalidade a um processo que se dá artificialmente, por imposição de um grupo dominador, associa-se também a uma espécie de identidade. Assim, é como se ser escravo fosse um aspecto da identidade do indivíduo, algo que é parte de sua natureza ou mesmo de sua essência, remetendo à passividade ou inferioridade.
A palavra “escravizado”, por sua vez, tem implícita a ideia do processo de escravização propriamente dito. Ela aponta, portanto, para aquilo a que a pessoa foi submetida, contra sua vontade, de modo extremamente violento.
Além disso, o conceito de “escravo” não se encaixa com o que se viu no Brasil e em outros lugares da América.
Isso porque, assim como ocorreu em outras sociedades, em boa parte do continente africano a escravidão ocorreu através de prisioneiros de guerras ou por pessoas que cometeram delitos ou tinham alguma dívida.
No entanto, em nenhum momento se criou uma sociedade com o escravismo como sistema de produção, diferentemente do que ocorreu no Brasil.
Sistema escravocrata brasileiro
Aqui, no século XVII, os negros escravizados chegavam a 70% da população. O que faz com que seja necessário enxergar como uma população escravizada com o objetivo de se obter ganhos. Ademais, tratava-se de uma escravização racial, sem que tivesse havido, por exemplo, uma guerra ou qualquer outro acontecimento que levasse à transformação do indivíduo em “escravo”.
Essas pessoas foram retiradas, à força, de onde viviam no continente africano, tornando-se posse dos portugueses. Houve um tráfico de pessoas que rendia lucro também à Coroa portuguesa, uma vez que esta cobrava impostos aos traficantes que, então, vendiam suas “mercadorias” no Brasil.
Muitas pessoas morriam no próprio navio, por inanição, vítimas de doenças, infecções nas feridas, entre outras condições degradantes do cárcere. Aqueles que chegavam ao destino enfrentavam a violência contínua dos métodos de tortura por parte de seus “proprietários”.
Revisionismo
As mudanças de termos são comuns, embora sejam vistas com certa resistência. Há quem diga que é o “politicamente correto” (um conceito que a academia e as ciências humanas não reconhecem como válido) ou algo forçado e desnecessário, mas ignora as interpretações dos fatos.
A literatura brasileira, por exemplo, por muito tempo foi produzida principalmente por homens brancos. Nas últimas décadas, mais pessoas pretas passaram a trazer outras visões sobre fatos históricos, que criam a necessidade de uma nova interpretação.
Isso não se resume ao debate de escravo ou escravizado e nem mesmo apenas entre brancos e pretos. Ocorreram alterações também sobre “invasões dos bárbaros”, “descobrimento do Brasil”, e tantos outros, como uma forma de deixar de enxergar pela visão do europeu.
Importância da linguagem
Rever os termos que usamos para nos referir a processos históricos é crucial para entendermos que a linguagem é o modo como se dá a representação. Quem decide como representar um determinado grupo é quem detém conhecimento a respeito dele. Isso era algo que, no passado, estava restrito a homens brancos de poder aquisitivo maior.
Com o passar do tempo, pessoas de outras classes e de outros lugares foram se tornando detentoras de conhecimento, ocupando a academia e realizando pesquisas. Desse modo, puderam questionar as representações passadas, estabelecidas por outros, e propor novas formas de se representar.
Empregar o termo “escravização” é uma proposta de pesquisadores que buscam ressaltar o aspecto racial-racista que levou à instauração do sistema brasileiro e que até hoje tem consequências na estrutura da sociedade.
Referência
https://www.iel.unicamp.br/sidis/anais/pdf/HARKOT_DE_LA_TAILLE_ELIZABETH.pdf